CORUJA
Rachel de Queiroz - PT7ARQ
Coruja... Bem, é o que sou. Não a propriamente dita, mas
em linguagem de radioamador. Pois, coruja é o radioamador ouvinte, o
que não tem transmissor e liga o receptor em casa, para ficar
ouvindo as conversas dos outros.
Divertimento barato, aliás. Não precisa sequer ter-se um
receptor de alta categoria; basta um pequeno transistor, desses
japoneses, de contrabando, acrescentado de uma antena de nove metros
de fio de aço de pescador.
O importante, além disso, é que o transistor tenha faixa
de onda de 40 metros, que é por onde se manifestam os radioamadores
da rede local. O mais, é constância e paciência.
E penetra-se, num mundo de que não suspeita o simples
cidadão, acostumado a escutar apenas as emissões comerciais de TV e
"broadcasting"; pululando a nosso redor, insuspeita, mas permanente
e ativa, funciona em volta do mundo todo, uma imensa rede de
estações de rádio, manipuladas por radioamadores que estabelecem
pela Terra inteira, uma cadeia de comunicações, muito mais eficiente
que os serviços públicos, oficiais ou particulares. A boa vontade é
o seu lema, a solidariedade humana a sua obrigação.
Quem viu aquele filme francês "Si Tous Les Gars Du
Monde...", pode fazer uma idéia do fenômeno. E não se trata de
conversa de fita de cinema, não; é assim mesmo, daquele jeito, que
eles se comportam, da Noruega ao Congo, de Ver-o-Pêso a Vigário
Geral.
Um radioamador é assim uma espécie de cruza entre
escoteiro e "santo" de sessão espírita; do escoteiro tem a mania de
bem servir, de não deixar passar um dia sem realizar um ato de
bondade, muitos atos de bondade. Do espírito tem a faculdade de
baixar no terreiro da gente, a uma simples evocação, e ainda por
cima servir de "cavalo" para qualquer mensagem de importância grande
ou pequena, que voce queira transmitir ou receber. Pois, para que a
mensagem seja transmitida, não precisa sequer que o interessado
escute o apelo de quem chamou: há sempre um colega serviçal que
escuta, toma nota e passa adiante, feito atleta com fogo simbólico.
Os radioamadores que se encontram diariamente a uma hora
certa, em grupo, formam o que se chama na gíria deles, uma "rodada".
Pode ser das cinco às sete da manhã, de uma às três da tarde, de dez
à meia-noite; a rodada não deixa de funcionar nunca.
É só procurá-la na freqüência habitual e lá estarão eles,
os companheiros do éter, a "assinar o ponto", a bater papo, a
comentar as marcas, as excelências e os defeitos técnicos das
respectivas transmissões, enchendo lingüiça, até que apareça o que
eles consideram "serviço sério": recados de urgência, mensagens,
comunicados de falecimento, de doença, de nascimento, de viagens, de
promoção de encontros de famílias ou amigos separados; um de Pará de
Minas outro de Barra do Corda, trocando comunicados afetuosos ou
urgentes, que "Mamãe foi operada e está passando bem", que "a festa
das bodas de ouro é terça-feira, sem falta, veja se vem mesmo!" E o
dono da estação de rádio é o "médium".
Num país onde os telégrafos pouco funcionam e os correios
ainda menos, calcula-se o valor dessa comunicação. O que uma troca
de telegramas pediria, no mínimo, alguns dias e isso em lugar onde
haja telégrafo, o radioamador resolve num quarto de hora.
Creio que a rodada mais famosa do Nordeste é a chamada de
"Cafezinho da Manhã", que funciona diariamente das cinco e meia às
sete e engloba uma rede de radioamadores que vai da Bahia ao
Maranhão, com incursões por Minas, Pará ou até onde for a onda de 40
metros.
Seu criador e animador é o "Caboclo Xavante" das tabas ao
"Queixeramobim", que em geral dirige a rodada, dá a palavra a quem
de direito, mantém a disciplina da reunião, faz, como eles dizem, "a
roda rodar".
Ë homem extremamente cortês, que pode estar
apreciadíssimo para "dar o pirulito", mas, não dispensa os
cumprimentos à LABRE, à escuta oficial, aos colegas de um em um,
incluindo os "familiares", sem esquecer a "rede regional de corujas,
da qual faço parte.
Mas, sendo assim disciplinador e comandante da rodada,
responsável pelo seu tom permanente de cortesia e boa camaradagem,
deixa de ser o seu tanto galhofeiro, e as sempre pronto a zombar das
conhecidas franquezas ou estripulias de uns outros da submissão dos
"barrigas brancas", das indiscrições de algum "cavalo de cão" e
insinuar maliciosamente às esposas na "coruja" as possíveis
peraltagem dos maridos em viagem... Nunca vi em carne e ossos, mas é
pessoa que trago no coração; conheço-lhe a voz entre dezenas, é
realmente espírito familiar e benéfico, desses que, nos terreiros,
são chamados de "guias"... o outro comandante do cafezinho, o é,
mesmo mandante do seu direito, alta patente militar e importante
função oficial; mas para nós, é simplesmente "o Chaguinha". Esse
conheço de longe, é um velho amigo dos tempos em que a gente pensava
que podia consertar o mundo com discursos e boletins, um dos mais
eficientes e prestativos da rodada. Perde horas do seu tempo
precioso, importante para um recado, tranqüilizar uma mãe aflita,
conseguir um avião que traga um enfermo de algum lugarejo distante,
obter a vacina.
Dantes era mestre em broncas, especialmente contra os mal
educados que invadem a freqüência, abafando a voz dos colegas e
atrapalhando as rodadas; agora, não sei o que lhe deu, está muito
manso.
Os anos de cidade e as funções oficiais não lhe alteraram
a fala típica de sertanejo e a sua sertaneja paixão por saber
notícias de chuva. Ah, se soldado pode ser flor, está ali uma.
Outros membros do cafezinho são da mais variada
procedência, padre e juiz, dona-de-casa, general, moço rico, pequeno
funcionário, comerciante, fazendeiro, até bispo! Tem de tudo ali,
reunidos todos numa só fraternidade, tratando-se por você, ninguém
querendo ser melhor do que os demais.
Com o truque nemonico, usam uma espécie de pseudônimo
tirado das iniciais dos seus prefixos; é o "velho fazendeiro",
"caboclo serrano" (não falei que eles parecem gente de terreiro? Até
essa mania de se chamarem "caboclos".) Um mais lírico, diz-se "viva
o nosso lar".
Outro se chama xadrez "xadrez lamparina". E tem o "Zé
Calado", e um meio maldizente, a quem os colegas apelidam de "língua
danada". Usa, além disso, a gíria particular em que expressões
técnicas e jargão familiar se misturam. Tratam-se entre si por
macanudos. Um recado é torpedo; automóvel é pé de borracha, mulher é
cristal; dar sinal no meio da conversa dos outros é dar uma bicorada;
falar ao microfone é modular; e ter estação forte que abafa todo o
mundo é ser tubarão, etc., etc.
Mas parece que, em conversas de radioamador, é proibido
falar em negócios, política e em dinheiro, regra a que eles obedecem
com fidelidade. Exceção feita em casos e que aludir a dinheiro é
indispensável - preço do material de rádio, de premente necessidade
de alguém distante que lembra a mesada ao pai ou ao numerário para
uma emergência; eles, então, usam metáforas mais ou menos
transparentes, como quilociclagem, "combustível", "manteiga". E
assim servem para alegrar o mundo, "fazendo a roda rodar", benza-os
Deus.
Obs.: Matéria publicada na Revista O CRUZEIRO, 21 de junho de 1962.