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RACHEL
DE QUEIROZ - PT7ARQ
Escritora cearense, natural de Fortaleza, nascida em 1910. É uma das
mais importantes romancistas do movimento do Nordeste.
Cronologicamente surgiu logo após a publicação de “A
Bagaceira” (1928), de José Américo de Almeida. “O Quinze”
(1930), seu livro de estréia é, na verdade, o romance que abriria
uma nova fase da ficção brasileira. A tendência social e o estilo
neonaturalista surgiram como um novo modo de retratar os problemas
do homem e da terra do Nordeste. O romance, publicado aos 20 anos de
idade da autora, pela primeira vez enfoca a sêca sob um ponto de
vista mais realista. Os retirantes são apresentados em toda a sua
penúria, sem proteção e sem diretriz que os oriente no trabalho
da terra. Seu segundo livro, “João Miguel”, foi publicado em
1932. Nêle, a escritora narra o drama de um presidiário numa
pequena cidade do interior. Êste livro é tecnicamente superior ao
primeiro, mostrando Rachel de Queiroz grande habilidade no diálogo,
que, sem dúvida, já prenunciava a autora dramática do futuro.
Caminho de Pedras, surgido em 1937, ficaria incorporado ao romance do
Nordeste como uma constante social. Na verdade, tanto José Lins do
Rêgo quanto Jorge Amado explorariam o aspecto político, com alguns
personagens engajados no Partido Comunista às voltas com um meio
provinciano, numa época de perseguição política.
Em 1939, publica “As Três Marias”, obra com tintas românticas e
realistas, onde descreve a vida de algumas moças num colégio de
freiras.
Daí por diante iria se dedicar à crônica militante, em jornais e
revistas do Rio de Janeiro, e ao teatro. Para êste gênero escreveu
duas peças, “Lampião” (1953) e “A Beata Maria do Egito”
(1958). Voltaria assim aos temas nordestinos, desenvolvendo em seu
teatro uma linguagem muito mais trabalhada do que nos seus romances.
Estas peças foram encenadas no Rio de Janeiro, com sucesso.
A autoria reuniria também suas crônicas em livro, como “A Donzela e
a Moura Torta” (1948).
Sua atuação como cronista de uma revista brasileira de grande circulação
na época, O Cruzeiro, é conhecida em todo o país.
É de sua autoria o belíssimo texto abaixo:
RÁDIO
TRANSISTOR
Sei que o homem desembarcar na Lua foi o fato mais importante do século
– e quem sabe até da história do mundo. Mas a divulgação do rádio
transistor teve um alcance muito maior, em sentido imediato. Não
conheço outra criação do progresso que possuísse tal capacidade
de penetração nem fosse tão rapidamente aceita pelas populações
mais atrasadas. Máquina de costura, luz elétrica, tudo isso
espalhou-se depressa e profundamente – mas não chega aos pés do
rádio de pilha.
Até do motor a explosão o rádio ganha, por causa da sua
acessibilidade. Todo mundo pode sonhar com um carro, até o índio
– mas adquiri-lo é outra coisa. Enquanto o rádio está
praticamente ao alcance de todos – até do índio, também.
No sertão mas escondido, em barracas secretas de rio por Amazonas e Goiás,
em serrarias perdidas, em campinas longe do mundo, se a gente avista
uma casa de caboclo, de colono, de pioneiro emigrante, nove casos em
cada dez, verá, por cima do telhado rústico, de cumeeira a
cumeeira, o fio de cobre da antena do rádio.
Dentro da casa haverá um tamborete, um pote, um fogão de barro, nada
mais. Porém, em cima de um caixote improvisado em mesa, trepado num
caritó na parede da sala, quase infalivelmente você verá um rádio.
Tocando o dia inteiro as suas musiquinhas de dois vinténs (e por
isso matando a velha e preciosa música folclórica), espalhando notícias
e – essa é a sua contribuição mais importante – servindo de
elo de ligação entre populações distantes que não têm entre si
outro veículo de comunicação, dando recados, pedindo notícias,
acusando cartas, servindo de correio gracioso aos que não têm
outro correio ou, tendo-o, não sabem como usá-lo.
Rara é a estação de interior – rara não, acho que não há mesmo
nenhuma que deixe de ter a sua “hora sertaneja” ou “alô, sertão”,
ou “mande o seu recado”, ou outro programa equivalente. E comove
a gente ouvir o trançado das informações e dos avisos – “Dona
Maria de tal, Fazenda Carnaúba, sua filha manda dizer que o menino
se operou e vai se salvar”. “Seu Raimundo Nonato, do Sítio
Pacavira, a família que perdeu o trem ontem e agora só pode ir na
semana que vem.” “Rosélia do Potiu, Baturite, avisa aos irmãos
Ribamar e Vicente, na Barra do Ceará, que a mãe faleceu
repentinamente, o enterro é hoje mesmo.” A princípio,
estranha-se como é que chegam a destino aquelas comunicações
perdidas, sem horário certo. Depois se entende – os rádios estão
sempre ligados, sempre tem em casa uma pessoa que escuta as
mensagens.
Ao ouvir um nome conhecido, arrebita a orelha, presta a atenção e
passa adiante o recado a quem interessa. É raríssimo perder-se um
comunicado ou chegar ele com atraso. Sempre alguém por perto
escutou. E pode faltar na casa o dinheiro para o fumo ou o café,
para a rede nova, para o corte de pano da mulher, mas não faltará
para o carrego do rádio – ou seja, carga de pilhas do aparelho. E
também, sendo o rádio objeto de tão indispensável presença em
todos os lares, e sendo quase sempre escasso o dinheiro em moeda
corrente, os rádios são negociados nas barganhas mais singulares:
um rádio novo por dois bacurinhos, um saco de milho e meia arroba
de algodão; um rádio velho, já passado por muitas mãos, por
amarrado de frangos e um relógio de pulso com corda quebrada; um rádio
ainda mais ou menos por tantos dias de serviço, uma lanterna de
pilha sem carrego e uma ninhada de ovos de galinha indiana...
Qualquer negócio vale, contando que o rádio venha; pois é da nossa
natureza, mesmo entre os mais esquecidos e abandonados seres, esse
desejo e esse orgulho de pertencer – (nem que seja através de uma
voz distante dentro de uma caixa de plástico) -, de fazer parte, de
se integrar na comunhão dos homens.
RACHEL
DE QUEIROZ
Obs.: Texto publicado no Jornal Correio do Povo
de Porto Alegre-RS, em 14 de julho de 2001.
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