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DIETRICH CARLOS ADOLPHO KUHLMANN - PY3DK
"REMINISCÊNCIAS DE UM RADIOAMADOR"
Fui
licenciado como radioamador no ano de 1936. Era estudante de
Engenharia e morava num quarto alugado numa família na Rua Coronel
Vicente, em Porto Alegre-RS, uma cidade pacata, com bondes, mas sem
ônibus, sem problemas de trânsito, com pouco mais de 200.000
habitantes, creio eu, muito simpática e acolhedora.
Meu
indicativo de chamada dado pelos Correios e Telégraphos (ainda se
escrevia com “ph”) era PY3CP. Tempos heróicos com equipamentos
artesanalmente construídos em casa, receptores regenerativos a válvula,
pois o transistor só foi inventado em 1948, e transmissores Hartley
auto excitados, modulados na grade, na supressora ou em classe B na
placa.
Formei-me
em dezembro de 1939, comecei a trabalhar logo depois e o
Radioamadorismo foi, aos poucos, sendo relegado para segundo plano.
Em
abril de 1941, pouco antes da grande enchente de maio, me transferi
para São Paulo. Foi uma viagem de trem, com locomotiva Maria-Fumaça,
76 horas de chacoalhação! Linha de ônibus não existia por falta
de estradas, e a passagem de avião era muito cara, acima de minhas
possibilidades. Antes de sair de Porto Alegre, desmontei minha estação
de Radioamador e dei todos os componentes, válvulas, capacitores
fixos e variáveis, resistores, bobinas, etc. ao meu amigo Ernesto
Jorge Dreher - PY3AB, então residente na Tristeza.
Em
junho de 1943, o Brasil, já em guerra, voltando de trem de Limeira
para São Paulo, estou sentado no carro-restaurante com um colega de
trabalho, quando é feita a fiscalização dos passageiros. Meu
colega mostra a carteira de identidade dele, tudo bem, eu mostro a
minha e recebo voz de prisão! Um vexame! Eu tento dialogar com o
inspetor, indago o motivo de minha prisão, mas não recebo explicação.
Ele tem ordem de prender, mas não de explicar. Meu colega, cujo
crime é de estar na minha companhia, é apenas detido, não preso,
como explica o inspetor. Que situação! Olhares hostis dos demais
passageiros no carro-restaurante, cochichos (provavelmente “espião”,
“quinta-coluna”, etc.).
Chegamos
em São Paulo, somos conduzidos ao DOPS, identificados, fichados e
fechados cada um em cela individual, no porão. Cela simples, não
exatamente de 5 estrelas, com janela bem alta, para fora, gradeada,
mas sem vidro, do outro lado, porta de grade de ferro, também uma
cama turca, com cobertor fino e roto, um vaso sanitário e uma pia.
Lá estou eu atônito e atordoado. Passei três dias com frio e
fome, matutando sobre o porquê desta minha situação insólita. No
terceiro dia sou solto, recebo meus pertences pessoais de volta e a
recomendação de me apresentar aos Correios e Telégrafos (nesta
altura já com “f”). Fui para o meu apartamentozinho no Centro,
na Rua Aurora, era solteiro ainda, meus pais residiam em Porto
Alegre, recém vindos de Ijuí e fiquei alguns dias de cama, com
febre alta e uma infecção muito feia da garganta, conseqüência
do “ar condicionado da minha suíte da qual acabava de sair”. O
médico me curou, antibióticos não existiam porque toda a produção,
estrangeira ainda, ia para os campos de batalha e seus hospitais.
Lá
vou eu aos Correios e Telégrafos, na Avenida São João, esquina da
Anhangabaú. O funcionário que me atende, muito gentil por sinal,
chateado com o incômodo que sofri (bota incômodo nisso!), me
explica que os Correios precisavam saber que destino eu tinha dado
ao meu material de radiotransmissão e recepção, pois o País
estava em guerra. Não sabendo o meu endereço, pediram ao DOPS que
me localizasse e providenciasse meu comparecimento aos Correios. Fiz
o meu depoimento, dizendo ter deixado todo o material com o meu
amigo Ernesto Jorge Dreher - PY3AB, e o caso estava resolvido.
Eu,
nesta altura, estava tão por baixo e com tanta raiva que comecei a
destruir tudo o que se relacionava com minha atividade como
Radioamador. Licenças, registro de comunicados, cartões QSL
(confirmação por escrito de contatos bilaterais), correspondência,
literatura técnica, revistas, etc. Nas minhas sucessivas mudanças
de residência (retornei em dezembro de 1943 para Porto Alegre)
reapareceu um pequeno livro norte americano “Notes on Amateur
Radio Transmitter Design”, de James Millen, publicado em 1936 e um
certificado da ARRL - American Radio Relay League (a associação
norte-americana de radioamadores) no período de 1941e 1942. Foram
os únicos documentos que escaparam à minha fúria destruidora e
qual guardo até hoje, com muito carinho.
Em
novembro de 1977 me aposentei. Os filhos (3) estavam encaminhados e
casados e vim morar com minha mulher aqui em Gramado. Gostei da nova
vida, mas, algum tempo depois, comecei a sentir uma coceira
estranha. Examinei o fenômeno e diagnostiquei que era o radio
bacillus que, latente por várias décadas, de repente se tornara
virulento. Dirigi-me então ao DENTEL - Departamento Nacional de
Telecomunicações indagando se, na minha condição de
ex-radioamador licenciado (omiti minha condição de ex-preso) eu
teria alguma facilidade para retornar à atividade. Não, não
tinha. Tudo bem, prestei exame para a classe B em 25 de abril de
1980 e para a classe A em 11 de julho de 1980, sem qualquer
problema.
Ao
receber o indicativo de chamada do DENTEL, a funcionária me
perguntou se eu tinha alguma preferência. Respondi que queria o meu
indicativo original PY3CP. Bobagem minha porque quem iria me
reconhecer e se lembrar de mim depois de 40 anos? Mas o indicativo
estava com um companheiro de Cachoeira do Sul (ao companheiro, meu
“sucessor”, dou um bom conselho: Não viaje de trem de Limeira
para São Paulo, pode ir preso. Mas já estou virando a boca prá lá)
e a funcionária perguntou se eu não queria ficar com o PY3DK, isto
é, com o sufixo das iniciais de meu nome, com que, evidentemente,
concordei.
Assim
retornei à confraria, conheci o decano dos radioamadores de
Gramado, meu especial amigo Darcy Carlos Bohrer - PY3BXP, hoje
residindo infelizmente em Porto Alegre-RS (infelizmente porque
fiquei privado da companhia e do chimarrão dele) e, literalmente
milhares e milhares de outros companheiros.
Tive
contatos com a Cidade do Vaticano, a República de Andorra, a expedição
brasileira na Antártida, etc., mas ficou uma mágoa, a de não
poder provar minha condição de um dos radioamadores mais antigos
ainda em atividade no Brasil. Certo, existem ainda uns poucos
companheiros de rádio daquela época, o Gustavo Welp Filho - PY3AW,
o Erni Silveira Peixoto - PY3DP, mas documento válido nada.
Aí,
em março deste ano de 1988, ao folhar uma revista americana de rádio,
deparo com um anúncio do Callbook, uma lista com hoje mais de
900.000 radioamadores em todo o mundo que é publicada anualmente de
1922. Escrevi para lá em 31 de março de 1988, perguntando em que
ano, depois de 1936, fui listado pela primeira vez como PY3CP. Em 26
de abril recebi, com muita alegria e, porque não dizê-lo, com emoção,
um bonito certificado, dizendo (traduzido livremente): “Saibam que
Dietrich Kuhlmann - PY3CP, apareceu pela primeira vez na edição de
inverno 1936-1937, do Radio Amateur Callbook”, assinado pelo
editor H.J.Nelson Jr., com carimbo em relevo e autenticado por
tabelião público, também com carimbo em relevo. Este
certificado enfeita agora o meu “shack” (o quarto-bagunça
do radioamador). A cópia xerox, aqui anexa, perde muito da graça
do original, pois o emblema do Callbook, um cavalo alado, está em
azul claro e não aparece na cópia. Os dois carimbos em relevo também
não aparecem, é claro.
O
presente relato fiz numa roda de companheiros de rádio, ainda sob a
impressão do recente recebimento do certificado. Meu amigo Darcy -
PY3BXP, insistiu para que o pusesse por escrito, o que faço com
muito prazer, inclusive para constar do meu arquivo. Espero que
nunca mais eu tenha motivos para destruí-lo como em 1943.
GRAMADO-RS,
30 DE ABRIL DE 1988”
Obs.:
O artigo do Dietrich Carlos Adolpho Kuhlmann - PY3DK é de 1988. O
Gustavo Welp Filho - PY3AW não está mais entre nós e o Darcy
Carlos Bohrer - PY3BXP hoje reside na Praia de Mariluz, em IMBÉ-RS.
Dietrich
Carlos Adolpho Kuhlmann, gaúcho, natural de Ijui, nasceu em 02 de
fevereiro de 1915, era casado com Hedi Scholz Kuhlmann e teve três
filhos, Irene, Regina e Ricardo. Faleceu em 02 de junho de 2001, na
cidade de Gramado-RS.
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Colaboração: IVAN
DORNELES RODRIGUES - PY3IDR |
email:
ivanr@cpovo.net |
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