RÁDIO TRANSISTOR
Sei que o homem desembarcar na Lua
foi o fato mais importante do século – e quem sabe até da história
do mundo. Mas a divulgação do rádio transistor teve um alcance
muito maior, em sentido imediato. Não conheço outra criação do
progresso que possuísse tal capacidade de penetração nem fosse tão
rapidamente aceita pelas populações mais atrasadas. Máquina de
costura, luz elétrica, tudo isso espalhou-se depressa e
profundamente – mas não chega aos pés do rádio de pilha.
Até do motor a explosão o rádio
ganha, por causa da sua acessibilidade. Todo mundo pode sonhar com
um carro, até o índio – mas adquiri-lo é outra coisa. Enquanto
o rádio está praticamente ao alcance de todos – até do índio,
também.
No sertão mas escondido, em
barracas secretas de rio por Amazonas e Goiás, em serrarias
perdidas, em campinas longe do mundo, se a gente avista uma casa de
caboclo, de colono, de pioneiro emigrante, nove casos em cada dez,
verá, por cima do telhado rústico, de cumeeira a cumeeira, o fio
de cobre da antena do rádio.
Dentro da casa haverá um
tamborete, um pote, um fogão de barro, nada mais. Porém, em cima
de um caixote improvisado em mesa, trepado num caritó na parede da
sala, quase infalivelmente você verá um rádio. Tocando o dia
inteiro as suas musiquinhas de dois vinténs (e por isso matando a
velha e preciosa música folclórica), espalhando notícias e –
essa é a sua contribuição mais importante – servindo de elo de
ligação entre populações distantes que não têm entre si outro
veículo de comunicação, dando recados, pedindo notícias,
acusando cartas, servindo de correio gracioso aos que não têm
outro correio ou, tendo-o, não sabem como usá-lo.
Rara é a estação de interior –
rara não, acho que não há mesmo nenhuma que deixe de ter a sua
“hora sertaneja” ou “alô, sertão”, ou “mande o seu
recado”, ou outro programa equivalente. E comove a gente ouvir o
trançado das informações e dos avisos – “Dona Maria de tal,
Fazenda Carnaúba, sua filha manda dizer que o menino se operou e
vai se salvar”. “Seu Raimundo Nonato, do Sítio Pacavira, a família
que perdeu o trem ontem e agora só pode ir na semana que vem.”
“Rosélia do Potiu, Baturite, avisa aos irmãos Ribamar e Vicente,
na Barra do Ceará, que a mãe faleceu repentinamente, o enterro é
hoje mesmo.” A princípio, estranha-se como é que chegam a
destino aquelas comunicações perdidas, sem horário certo. Depois
se entende – os rádios estão sempre ligados, sempre tem em casa
uma pessoa que escuta as mensagens.
Ao ouvir um nome conhecido,
arrebita a orelha, presta a atenção e passa adiante o recado a
quem interessa. É raríssimo perder-se um comunicado ou chegar ele
com atraso. Sempre alguém por perto escutou. E pode faltar na casa
o dinheiro para o fumo ou o café, para a rede nova, para o corte de
pano da mulher, mas não faltará para o carrego do rádio – ou
seja, carga de pilhas do aparelho. E também, sendo o rádio objeto
de tão indispensável presença em todos os lares, e sendo quase
sempre escasso o dinheiro em moeda corrente, os rádios são
negociados nas barganhas mais singulares: um rádio novo por dois
bacurinhos, um saco de milho e meia arroba de algodão; um rádio
velho, já passado por muitas mãos, por amarrado de frangos e um
relógio de pulso com corda quebrada; um rádio ainda mais ou menos
por tantos dias de serviço, uma lanterna de pilha sem carrego e uma
ninhada de ovos de galinha indiana...
Qualquer negócio vale, contando que o rádio
venha; pois é da nossa natureza, mesmo entre os mais esquecidos e
abandonados seres, esse desejo e esse orgulho de pertencer – (nem
que seja através de uma voz distante dentro de uma caixa de plástico)
-, de fazer parte, de se integrar na comunhão dos homens.
RACHEL DE QUEIROZ - PT7ARQ (SK)
Texto publicado no Jornal Correio
do Povo, de Porto Alegre-RS, em 14 de julho de 2001.
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